As Américas e a Civilização
As Américas e a Civilização: Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Desigual dos Povos Americanos é um livro do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro[1], publicado pela primeira vez em português no ano de 1970[nota 1][2], que busca categorizar as sociedades contemporâneas da América de acordo com seus processos de formação cultural e desafios mais imediatos[3], bem como discorrer sobre os mesmos em distintos graus de profundidade.
As Américas e a Civilização: Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Desigual dos Povos Americanos. | |||||||
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Autor(es) | Darcy Ribeiro | ||||||
Idioma | português | ||||||
País | Brasil | ||||||
Assunto | Antropologia, Ciências Políticas, História e Sociologia | ||||||
Gênero | ensaio | ||||||
Série | Estudos de Antropologia da Civilização | ||||||
Editora | Civilização Brasileira | ||||||
Lançamento | 1970 | ||||||
Cronologia | |||||||
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Ribeiro parte da assunção de que as sociedades contemporâneas são frutos da expansão europeia, para ele, dividida em dois processos históricos — na toada de seus trabalhos passados — onde, em um primeiro momento, Rússia, Portugal e Espanha; Holanda, Inglaterra e França, em um segundo momento, alteraram profundamente a vida de boa parte da humanidade.
A depender das consequências dos processos de expansão promovidos pela Revolução Mercantil e pela Revolução Industrial, Ribeiro classifica as sociedades deles resultantes como povos-novo, povos-testemunho, povos-transplantado ou povos-emergente, categorias que ele chama de configurações histórico-culturais[4][5][6][7][8][9], pretendendo iniciar um intenso debate acerca do conhecimento que os povos americanos modernos têm de si mesmos.[nota 2]
Categorias
editarOs povos-testemunho, como o Peru e o México, são restos de civilizações indígenas, desfiguradas pela intervenção em seus sistemas de produção, pela substituição de suas classes dominantes e pelo forçado convívio indiferenciado com povos rivais.
Os povos-transplantado, como os Estados Unidos e a Argentina, são extensões de sociedades europeias, formadas pela migração maciça às terras conquistadas, pelo pequeno contato dos colonos com outros povos e pelo seu mínimo distanciamento cultural da Europa.
Os povos-novo, como o Brasil e Cuba, são hibridizações entre dominados e dominadores, formados pela intensa miscigenação entre povos muito diferentes, pelo brutal submetimento destes a formas comuns de exploração e pela inviabilidade da reprodução de seus modos de vida originais nas novas sociedades.
Os povos-emergente, como os antigos araucanos e os modernos quéchuas, a categoria menos discorrida, são também restos de antigas civilizações indígenas, aspirantes à reconstituição de seus modos de vida originais e à autonomia ou independência política[11][nota 3].
Ribeiro associa à cada categoria certos problemas sociais e desafios, muitos deles relacionados à integração no atual processo de transformação das sociedades, desencadeado pela Revolução Termonuclear.
Isso também é válido para todo o restante do mundo, chegando Ribeiro a classificar algumas outras sociedades nessa ou naquela categoria para fins ilustrativos, no entanto, a ênfase da obra é nos povos americanos, sendo uma espécie de focalização na América do que foi elaborado n'O Processo Civilizatório.
Povos-testemunho
editar"[…] as populações mexicanas, mesoamericanas e andinas, enquanto sobreviventes de antigas civilizações — asteca, maia e incaica — que desmoronaram ao impacto da expansão europeia, entrando num processo de aculturação e de reconstituição étnica, ainda inconcluso para todas elas".— RIBEIRO, p.125
Ribeiro classifica como povos-testemunho: México, partes da América Central, Peru, Bolívia e Equador, onde os povos indígenas situados em estágios mais avançados do continuum da evolução sociocultural[nota 4] viram a substituição de suas classes dominantes, a tomada de suas capitais e a reconfiguração de seus centros de difusão de cultura erudita como mera conquista — havendo inclusive colaboração por parte de setores intermediários, que viram chance de expandir seus privilégios —, a qual sucedeu uma dualidade de opressão tão intensa que os fez profundamente diferenciados de todas suas matrizes e irregularmente introduzidos na cultura dominadora;[nota 5]
Povos-transplantado
editar"[…] os resultados contemporâneos das migrações para amplos espaços do Novo Mundo de contingentes europeus que para cá vieram com suas famílias, aspirando reconstituir a vida social de suas matrizes, com maior liberdade e com maiores chances de prosperidade".— RIBEIRO, p. 455[12]
Ribeiro classifica como povos-transplantado americanos:[nota 6] Canadá e Estados Unidos,[13] onde excedentes populacionais da Inglaterra, e em um segundo momento da Europa inteira, se organizaram em granjas autossuficientes, sem muito convívio e miscigenação com demais contingentes humanos, não passando por intensos processos de aculturação para se fazerem americanos, mas tão somente por assimilação,[nota 7] dada a proximidade entre as culturas inglesa e as demais europeias; Argentina e Uruguai,[14] onde a população mestiça original foi esmagada por excedentes populacionais europeus na toada das políticas de embranquecimento, a maioria da Itália e Espanha, que só permitiram alguma preservação da cultura original pela necessidade de adaptação ecológica, pela então inexistência das identidades europeias modernas e pela dupla presença de culturas de base hispânica — nativos e imigrantes —,[nota 8] constituindo, talvez, o único caso na história onde a população original foi substituída por imigrantes[15][16][17]
Povos-novo
editar"[…] o resultado de formas específicas de dominação étnica e de organização produtiva sob condições de extrema compulsão social e deculturação compulsória que, embora exercidas em outras épocas e em distintas áreas do mundo, alcançaram na América colonial a mais ampla e a mais rigorosa aplicação".— RIBEIRO, p. 223[18]
Ribeiro classifica como povos-novo: Brasil, Colômbia, Venezuela, Antilhas espanholas e partes da América Central, onde o contato entre homens europeus e mulheres de povos situados nos estágios iniciais do continuum da evolução sociocultural[nota 9] produziram grandes populações mamelucas[nota 10] que acabaram por aculturar os contingentes africanos explorados em regimes de plantations[nota 11] — no caso dos quatro primeiros — e por servirem de mão de obra especializada em outros empreendimentos coloniais[nota 12] — no caso dos três últimos; Guianas, Sul dos EUA, Antilhas inglesas, francesas e holandesas, onde a massa mameluca não existiu ou emigrou após a instalação de regimes de plantations.[nota 13] responsável pela concentração de imensos contingentes africanos e crioulos, que acabaram por assumir o papel de protoetnia aculturadora.
Caso sui generis panamenho
editar"[…] que não chega a ser um povo pelo artificialismo de sua criação e pela coerção sobre ele exercida pelos norte-americanos, impossibilitando qualquer esforço de integração nacional".— RIBEIRO, p. 209[19]
Tetrapartido em componentes indígenas, negros, criollos e americanos verdadeiramente apartados dos três primeiros em ilhas de riqueza, Ribeiro não classificava o Panamá de sua época em nenhuma das categorias concebidas, ainda não consciente de si ou revoltado com os militares e administradores americanos do canal.
Críticas
editarNo livro Configurações Histórico-Culturais dos Povos Americanos, resumo d'O Processo Civilizatório e d'As Américas e a Civilização, vários autores, de várias partes do mundo comentam sobre diversos pontos das duas obras, tecendo críticas, elogios e recomendações.
Os arqueólogos, Jan Bouzek, Tchecoslováquia, e Cynthia Nelson, Egito, rechaçam importantes partes d'O Processo Civilizatório, que afetam visceralmente este livro, desde o julgamento de ser necessário enfatizar as enormes diferenças entre as sociedades agrícolas, até o julgamento de que as formações socioculturais não explicam o processo evolutivo. Além disso, Nelson julga necessário considerar a autoimagem das sociedades ao discorrer sobre suas transformações étnicas[20][21].
O antropólogo estadunidense Frederick Hicks questiona se as configurações histórico-culturais realmente ponderam características econômicas e ecológicas o suficiente, sugerindo serem excessivamente baseadas em manifestações religiosas e étnico-raciais. Também questiona pontos d'O Processo civilizatório, sugerindo que os Estados rurais artesanais coletivistas e privatistas não são formações socioculturais alternativas, mas sucessivas[22].
Para o arqueólogo canadense Andrew Hunter Whiteford, Ribeiro "amontoa adiversidade da sociedade mexicana ou peruana numa singular categoria simplesmente porque está, agora, situada no local de uma cultura pré-colombiana altamente desenvolvida", o que, somado à negação que faz do sentimento de nostalgia indígena dos mestiços nos povos-testemunho, faz o arqueólogo julgar confusa a tipologia[23].
Para o antropólogo brasileiro Eduardo Galvão, Ribeiro erra de modo crasso ao nada dizer sobre a existência de fortes tensões entre brancos e negros não só nos povos-transplantado, como os Estados Unidos, mas inclusive em países profundamente caldeados como alguns povos-novo, notavelmente o Brasil, frequente e erroneamente apontado como "democracia racial". Julga o esquema, ainda, como "antes de caráter sociopolítico do que uma tentativa de análise cultural"[24].
Notas
- ↑ A primeira publicação ocorreu durante o exílio do autor, em língua espanhola, no ano de 1969
- ↑ Austrália, Índia, Japão, Nova Zelândia e outros povos não americanos são citados e mesmo categorizados no livro, para fins essencialmente comparativos e sem aprofundamento. Isso é particularmente notável no caso dos povos-emergentes, onde o autor cita uma confederação araucana como único povo dessa categoria outrora existente em solo americano [10], sem qualquer aprofundamento, deixando as menções aos povos-emergentes quase que exclusivamente a tribos africanas e asiáticas. Tal posição, no entanto, é revista, também sem aprofundamento, no livro Configurações Histórico-Culturais dos Povos-Americanos (1975), que resume os dois primeiros volumes da coleção Estudos de Antropologia da Civilização
- ↑ A categoria em questão é comumente omitida em comentários sobre a tipologia do autor e é a menos característica de todas, com notáveis divergências entre as definições e classificações de 1970 e de 1975.
- ↑ E também os muitos povos que estes já dominavam.
- ↑ Afinal povos de diferentes estágios evolutivos, e muitas vezes inimigos, foram forçados às mesmas compulsões e a conciliação de fragmentos de culturas ancestrais — suas e vizinhas — com a dominadora, opostas às suas em praticamente tudo
- ↑ Além de partes do Brasil, Chile e Costa Rica, as quais não se aprofunda
- ↑ O que significa que a adaptação dos europeus a vida na América do Norte foi muito mais padronizante do que substitutiva, exigia pouco mais que a adequação a uma cultura irmã.
- ↑ Sendo, seguramente, fator determinante na configuração do Uruguai e da Argentina como países de língua espanhola, apesar da predominância da imigração italiana sobre todas as outras nesses países.
- ↑ Como os araucanos, os guaranis, os aruaques, os caribes, os taínos, os diaguitas e os tupis
- ↑ Universal em quase todos os casos de contato entre populações distintas, a mestiçagem foi favorecida nas referidas regiões pela cultura dos povos que nelas viviam, mais propensas a abertura e a admissão de corpos estranhos, como bem exemplifica o cunhadismo dos tupinambás e práticas similares.
- ↑ Como o da cana-de-açúcar, do tabaco, do cacau e do algodão
- ↑ Como mineração, extrativismo vegetal, pastoreio e outras formas agricultura
- ↑ Afinal houve uma grande valorização das propriedades no Caribe após a instalação de engenhos açucareiros, o que levou muitos a vendê-las e saírem das ilhas.
Referências
- ↑ RIBEIRO, Darcy (1970). As Américas e a Civilização: Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Cultural Desigual dos Povos Americanos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira
- ↑ «Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR): Bibliografia». Consultado em 2 de outubro de 2024
- ↑ CID, Luyza Roberta Carvalho (2023). Entre fronteiras: o exílio de Darcy Ribeiro no Uruguai e sua influência na construção de seu pensamento latino-americanista (1964-1968). Guarulhos (SP): USP-fflch. p. 37
- ↑ CARDOSO, Antônio Dimas; TIBO, L.; RIBEIRO, M. J. A.; GRAVE, M. R. (2020). Ideias sobre a formação sociocultural e desenvolvimento na América Latina. Revista Eletrônica Interações Sociais. 4. Rio Grande (RS): Universidade Federal do Rio Grande (FURG). p. 128
- ↑ GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo (1999). Os 'Índios do Descobrimento':Tradição e Turismo (PDF). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro/MN/PPGAS. p. 122
- ↑ RISÉRIO, Antônio (2008) [1995]. Em defesa da semiodiversidade. GALÁxIA. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. p. 23
- ↑ SERPA, Talita Miranda (2012). A cultura brasileira de Darcy Ribeiro em língua inglesa: um estudo da tradução de termos e expressões da Antropologia da Civilização (PDF). São José do Rio Preto (SP): Universidade Estadual Paulista. p. 315
- ↑ SOUZA, Marcelo Lopes de (2012). Autogestão, “autoplanejamento”, autonomia:atualidade e dificuldade das práticas sociais libertárias dos movimentos urbanos. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. p. 87
- ↑ PINHEIRO, Lucas Miranda (2008). El ingenioso caballero Darcy Ribeiro: a trajetória de um intelectual andante na cultura política utópica do Brasil e da América Latina. Franca (SP): Universidade Estadual Paulista/FCHC. p. 111
- ↑ RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970, p. 438 link.
- ↑ RIBEIRO, Darcy (1970). As Américas e a Civilização: Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Cultural Desigual dos Povos Americanos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 438
- ↑ RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970, p. 455 link.
- ↑ RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970, p. 465 link.
- ↑ RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970, p. 513 link.
- ↑ RIBEIRO, Darcy (1970). As Américas e a Civilização: Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Cultural Desigual dos Povos Americanos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 465
- ↑ RIBEIRO, Darcy (1970). As Américas e a Civilização: Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Cultural Desigual dos Povos Americanos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 513
- ↑ RIBEIRO, Darcy (1970). As Américas e a Civilização: Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Cultural Desigual dos Povos Americanos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 455
- ↑ RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970, p. 223 link.
- ↑ RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970, p. 209 link.
- ↑ NELSON, Cynthia (1975) [1969]. Cynthia Nelson (Cairo, Egito, 4-8-1969) (em RIBEIRO 1975. Configurações Histórico-Culturais dos Povos Americanos). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. pp. 94, 98
- ↑ BOUZEK, Jan (1975) [1969]. Jan Bouzek (Praga, Tchecoslováquia, 22-8-69) (em RIBEIRO 1975. Configurações Histórico-Culturais dos Povos Americanos). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 107
- ↑ HICKS, Frederic (1975) [1969]. Frederic Hicks (Louisville, Kentucky, EE. UU., 30-7-69) (em RIBEIRO 1975. Configurações Histórico-Culturais dos Povos Americanos). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. pp. 103, 105
- ↑ WHITEFORD, Andrew Hunter (1975) [1969]. Andrew Hunter Whiteford (Beloit, Wisconsin, USA 5-8-69) (em RIBEIRO 1975. Configurações Histórico-Culturais dos Povos Americanos). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 93
- ↑ GALVÃO, Eduardo (1975) [1969]. Eduardo Galvão (Belém, Brasil, 2-9-69) (em RIBEIRO 1975. Configurações Histórico-Culturais dos Povos Americanos). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 107