Apoteose
A apoteose consiste em elevar alguém ao estatuto de divindade, ou seja, endeusar ou deificar uma pessoa devido a alguma circunstância excepcional. No mundo antigo esta circunstância era geralmente considerada para os heróis.
Por extensão, utiliza-se o termo apoteose quando se atribui exageradamente a alguém honrarias ou qualidades. No teatro, a apoteose corresponde ao ponto final de uma cena que decorre de maneira espectacular.
O termo apoteose remete para o tema da divindade e tem duas acepções principais: uma ligada à civilização romana ou civilizações anteriores, e outra que constituiu o seu prolongamento para o domínio da história da arte.
Para as religiões de mistérios da antiguidade, apoteose constituía o momento ritualístico da união com divino (Uno), ou mesmo, "tornar-se deus".
Apoteose antiga
editarAntigo Egito
editarAntes do período helenístico, o culto imperial era exercido no Antigo Egito (aos faraós) e na Mesopotâmia. A partir do Império Novo, todos os faraós falecidos foram deificados como Osíris.
Grécia Antiga
editarNa Grécia Antiga, e pelo menos desde o chamado período geométrico no século IX a.C. os heróis há muito falecidos estavam ligados a mitos fundadores das cidades gregas sendo-lhes prestados cultos ctónicos nos seus heroon, os templos dedicados aos heróis.
No mundo grego, o primeiro líder a dar a si próprio honras divinas foi Filipe II da Macedónia, que era um príncipe, quando os gregos já tinham afastado as monarquias, e que tinha extensas ligações económicas e militares, embora por vezes antagonísticas, com a Pérsia Aqueménida, onde os reis eram divinos. No seu quinto casamento, a imagem de Filipe entronizado foi levada em procissão entre os deus do Olimpo. "O seu exemplo em Aigai tornou-se um hábito, passado aos reis da Macedónia que mais tarde seriam venerados na Ásia Grega e daí para Júlio César e para os imperadores de Roma"[1] Estes líderes helenísticos poderiam ser elevados a um estatuto igual ao dos deuses antes da sua morte (como, por exemplo, Alexandre, o Grande) ou depois (por exemplo, os membros da dinastia ptolemaica). O culto aos heróis similar à apoteose era também uma honra concedida a alguns artistas do passado distante, como Homero.
Roma Antiga
editarA apoteose na Roma Antiga era um rito funerário da religião romana, porventura o mais honorífico, e que elevava o defunto à categoria dos deuses. A apoteose era marcada pelo voo de uma águia desde o leito fúnebre até à morada celeste dos deuses. O defunto recebia o qualificativo de divinus (divino). Júlio César foi o primeiro a receber a apoteose segundo a decisão do senado. Mais tarde, o senado decidiu aplicar a apoteose para a maior parte dos seus sucessores, incluindo Constantino I e o seu filho Constâncio II.
Antiga China
editarA obra Investidura dos Deuses, épico da dinastia Ming, inclui muitas lendas de deificação. Vários mortais foram deificados no panteão daoista, tais como Guan Yu, Iron-crutch Li e Fan Kuai. O general Yue Fei, da época da dinastia Song, foi deificado durante a dinastia Ming e é considerado ser um dos três generais de mais alto posto no exército celestial.[2][3]
No cristianismo
editarA teologia cristã tradicionalmente faz uma distinção entre teose (ou Theósis) e apoteose. A fé ortodoxa vê Jesus como uma deidade preexistente que tomou existência mortal, e não como um mortal que atingiu a divindade (ver arianismo). Em relação aos seres humanos, a teologia mística da Igreja Ortodoxa descreve a situação como "theosis": os seres humanos entram na vida divina da Trindade através de Jesus Cristo.
Tema artístico
editarPintura e escultura
editarA apoteose na história da arte constitui um tema iconográfico (usado na escultura e também na pintura) onde é representada a recepção de uma personagem principal entre os deuses, no domínio celestial ou no panteão da civilização em que se enquadre.
Na arte a matéria é prática: a elevação da figura humana ao divino segue determinadas convenções. Assim é de modo que o tema existe na arte cristã e em muitas outras. As entidades da apoteose podem ser vistas como sujeitos que enfatizam a divindade de Cristo (Transfiguração, Ascensão, Cristo Pantocrator) e figuram pessoas santas "in gloria" - ou seja, nos seus papéis de "revelados por Deus".
A apoteose é a suprema glorificação para a figura representada. Enquanto encenação do poder político, o Palazzo Vecchio de Florença apresenta uma impressionante apoteose do seu soberano, o Grão-Duque de Médici, na Sala dos Quinhentos, no tecto; o tondo central representa-o em majestade com todos os brasões das cidades conquistadas, e as armas heráldicas da família Médici; um anjo entrega-lhe o seu ceptro, e outro coloca-lhe uma coroa sobre a cabeça.
O visitante deve levantar a cabeça para o alto para ver esta pintura que está mais de oito metros acima de si: é a apoteose do grão-duque.
Os Sforza quiseram igualmente inscrever a sua majestade com uma estátua equestre que relembrasse o gesto de Alexandre, o Grande e pediram a Leonardo da Vinci, que fizesse os planos para essa estátua, mas esta nunca foi construída.
Artistas mais recentes usaram o conceito por motivos que vão desde o simples e sincero respeito pelos falecidos (Constantino Brumidi tem um fresco "A Apoteose de Washington" na cúpula do Capitólio em Washington, D.C.), ao enquadramento artístico (Salvador Dalí usou muitas apoteoses e Jean-Auguste Dominique Ingres pintou uma "Apoteose de Homero"), e mesmo ao efeito cómico.
Muitos líderes modernos exploraram as imagens artísticas se não mesmo a teologia apoteótica. Exemplos disto são as figurações de Jaime VI da Escócia e I de Inglaterra por Rubens na "Banqueting House" (uma expressão do divino direito dos reis) ou de Henrique IV de França, ou Appiani e a sua apoteose de Napoleão Bonaparte. O termo é usado figurativamente para se referir à elevação de um líder morto, frequentemente assassinado ou martirizado para o estatuto de figura super-humana carismática e à remoção de todas as faltas ou controvérsias que estiveram a si ligadas em vida - por exemplo, Abraham Lincoln nos Estados Unidos, Yitzchak Rabin em Israel, ou, num plano diferente, Kim Jong-il e Kim Il-sung na Coreia do Norte.
Música
editarO termo apoteose na música refere-se ao surgimento de um tema de forma majestosa ou exaltada. Representa o equivalente musical do género apoteótico nas artes visuais, especialmente onde o tema está ligado de algum modo a personagens históricas ou caracteres dramáticos. Ao coroar uma cena musical a apoteose funciona como uma peroração, ou seja, a utilização de um desfecho forte para impressionar o auditório, seguindo uma analogia com a arte da retórica.
Os momentos de apoteose são abundantes na música, e a própria palavra surge por vezes. Hector Berlioz usou-a como título para o andamento final da sua Grande symphonie funèbre et triomphale, um trabalho composto em 1846 para a dedicação do monumento aos mortos da França nas guerras. O compositor checo Karel Husa, preocupado em 1970 com a proliferação de armas e a deterioração do meio ambiente, chamou ao seu responso musical Apoteose desta Terra. Maurice Ravel fez o mesmo com a peça Ma Mère L'oye, cujo último movimento - Le jardin féerique, é uma apoteose.
Literatura
editarJoseph Campbell, no seu livro The Hero With a Thousand Faces, escreve que o Herói Universal do monomito deverá passar por um estado de apoteose. De acordo com Campbell, a apoteose é a expansão da consciência de que o herói terá experiência após derrotar o seu inimigo.
Arthur C Clarke, em Childhood's End, colocou os overlords a referirem-se à "apoteose" da Humanidade.
Stephen King, no primeiro livro de The Dark Tower (The Gunslinger) inclui a frase The desert was the apotheosis of all deserts.
Ver também
editarReferências
- ↑ Robin Lan Fox, Alexander the Great (1973:20)
- ↑ Liu, James T. C. "Yueh Fei (1103-41) and China's Heritage of Loyalty." The Journal of Asian Studies. Vol. 31, No. 2 (Feb., 1972), pp. 291-297, pg. 296
- ↑ Wong, Eva. The Shambhala Guide to Taoism. Shambhala, 1996 (ISBN 1-57062-169-1), p. 162
Bibliografia
editar- Arthur E.R. Boak, "The Theoretical Basis of the Deification of Rulers in Antiquity", in: Classical Journal vol. 11, 1916, pp. 293–297.
- Franz Bömer, "Ahnenkult und Ahnenglaube im alten Rom", Leipzig 1943.
- Walter Burkert, "Caesar und Romulus-Quirinus", in: Historia vol. 11, 1962, pp. 356–376.
- Jean-Claude Richard, "Énée, Romulus, César et les funérailles impériales", in: Mélanges de l'École Française de Rome vol. 78, 1966, pp. 67–78.
- Bernadette Liou-Gille, "Divinisation des morts dans la Rome ancienne", in: Revue Belge de Philologie vol. 71, 1992, pp. 107–115.
- David Engels, "Postea dictus est inter deos receptus. Wetterzauber und Königsmord: Zu den Hintergründen der Vergöttlichung frührömischer Könige", in: Gymnasium vol 114, 2007, pp. 103–130.
- Stephen King "The Dark Tower: The Gunslinger