Demiurgo

Espírito de criação em algumas escolas de filosofia

Demiurgo (grego, δημιουργός, demiourgos) significa "o que trabalha para o público, artífice, operário manual", demios significando "do povo" (de demos, povo) e -ourgos, "trabalhador" (de ergon, trabalho.[1])

No sentido de "trabalhador para o povo", a palavra foi usada em todo o Peloponeso,[2] com exceção de Esparta, e em muitas partes da Grécia, como sinônimo de um alto magistrado.[3] No pensamento cosmogônico de Platão, o termo designa o artesão divino — causa da alma do mundo — que, sem criar de fato o universo, dá forma a uma matéria desorganizada imitando as essências eternas, tendo os deuses inferiores, criados por ele, como tarefa a produção dos seres mortais.[4] No pensamento gnóstico, o demiurgo, criador do mundo é distinto do Deus supremo e em geral considerado mau,[4] enquanto que para Platão o demiurgo é bom: "Ele era bom e, naquilo que é bom, nunca surge inveja de nada; e sendo desprovido de inveja, desejou que todos fossem, tanto quanto possível, semelhantes a Ele".[5]

Platonismo e Neoplatonismo

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 Ver também : Platonismo e Timeu

O uso filosófico e o substantivo próprio derivam do diálogo Timeu escrito por Platão em 360 a.C.,[6] a causa do universo,[7] de acordo com a exigência de que tudo que sofre transformação ou geração (genesis) sofre-a em virtude de uma causa.[8] Diferente do deus cristão, o demiurgo não cria ex nihilo[9][10] mas a partir de um estado preexistente de caos, tentando fazer seu produto assemelhar-se ao modelo eterno das Formas,[11] assim a atividade do demiurgo compreende observar as Formas,[12] desejar que tudo seja o melhor ou mais similar possível ao modelo eterno e perfeito.[13]

A meta perseguida pelo demiurgo platônico é o bem do universo que ele tenta construir.[14] Este bem é recorrentemente descrito em termos de ordem,[15] Platão descreve o demiurgo como uma figura neutra (não-dualista), indiferente ao bem ou ao mal,[16] mas apesar de bom, sofre limitações na coordenação criativa do cosmos (não onipotente[17]), por isso, só é bom até um ponto, enquanto manter correspondência absoluta ao modelo ideal, assim Platão apela para o princípio de "causa errante", que por natureza produz movimento[18] e tempo.[19] Platão entende a "carência total de finalismo" (a mera disteleologia), isto é, algo indeterminado, anômalo, casual, a desordem em sentido global. Eis o que significa justamente "causa errante", ou seja, "causa que age ao acaso e de modo anômalo".[20]

Médio platonismo

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De acordo com Proclo,[21] Numênio considerou que havia uma espécie de trindade, ou três princípios supremos: o "Primeiro Deus", chamado Pai, O Primeiro, Nous, O Um e O Bem, é o ser absoluto, perfeitamente transcendente e autônomo. Ele é pai do "Segundo Deus", o Demiurgo que também se chama Nous, ele é igualmente bom, porque compartilha do bem do Primeiro Deus, mas possui uma inclinação a matéria.[22] Numênio também alegou que as três divindades eram na verdade uma só.[23]

Enquanto os deuses menores do Timeu de Platão são responsáveis por acrescentar uma alma mortal à alma racional imortal entregues pelo demiurgo, o demiurgo de Numênio é responsável apenas pela encarnação e reencarnação das almas mortais, que são, elas próprias, de origem superior.[24] Numênio considerou ainda um demiurgo dualista, sua parte contemplativa é a alma do mundo benévola e a parte da criação, porque se preocupa unicamente com a matéria, é a alma do mundo má.[25]

Neoplatonismo

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 Ver também : Neoplatonismo

Plotino não interpreta a criação do mundo através do demiurgo platônico de modo literal, mas ainda assim, uma interpretação figurativa do demiurgo é usada, ele introduz uma separação entre realidade inteligível e realidade sensível.[26]

Segundo Proclo, Plotino considerava que o primeiro demiurgo é o que contempla o paradigma, o segundo é o que dispõe o resultado da contemplação em ação, primeiro criando o universo e então o governando. A parte elevada deve ser chamada Cronos e parte inferior, a ação, traz o nome de Zeus. O reino de Cronos e o intelecto de Zeus, juntamente constituem o nível intermediário entre O Um e o universo.[27]

Jâmblico equaliza todo o cosmos a Demiurgo,[28] concordando com Plotino, ele afirma ainda que apenas o demiurgo contém o ser e o inteligível.[29]

Gnosticismo

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 Ver artigo principal: Gnosticismo

Os gnósticos acreditavam que o Criador ou demiurgo era uma entidade do mal,[30] o que contrasta com o conceito platônico[31] Segundo o gnosticismo existe incompatibilidade entre a esfera divina, que é luz, e o universo de nossa experiência, que é terreno e desprovido de sentido, esse dualismo, inspirado por uma visão pessimista do mundo e de sua história, não é eterno como para os maniqueus, pois o mal só apareceu com a criação, atribuída à hìbrys de um demiurgo, e há de desaparecer um dia.[32]

Em textos gnósticos como no Apócrifo de João e Da origem do Mundo, demiurgo, o filho de Sophia recebe nomes que definem a sua natureza: Yaldabaoth ("filho dos caos"[33]), Sakla (do aramaico, "tolo"),[34] Samael ("deus cego")[35] ou ainda Nebruel (ou Nebro).[36] É ainda no Apócrifo de João que descrevem o demiurgo Yaldabaoth com um ser que tem o rosto que se assemelha a um leão.[36]

No apócrifo Hipóstase dos Arcontes, Yaldabaoth e Sabaoth são entidades diferentes, esta última seria o filho do primeiro mas mesmo nessa versão Sabaoth tem função semelhantes, seu trono é uma imensa carruagem de querubins rodeada por anjos ministeriais. O nome Yaldabaoth exercitou a ingenuidade dos estudiosos por um bom tempo, este arconte foi igualado a Yahweh (Javé) do Antigo Testamento,[37][38][39] mas não há indícios no hebraico para tal significado.[40]

No Sistema de Ptolomeu de Valentim, o demiurgo é descrito como um anjo, semelhante a deus, que elevou-se até o sétimo céu que circunda a terra, acima deste está o oitavo céu e acima dele o Deus Supremo, que fica completamente distante do mundo. Anjo guardião da esfera inferior, o demiurgo foi designado como o criador do mundo, o chefe dos arcontes pelos quais Achamoth, a mãe, deu à luz (Ogdôada). Por trás do demiurgo, há uma reunião de forças subordinadas, os arcontes, que são seus colaboradores.[41] A teoria Valentiniana elabora que da Achamoth (he káta sophía ou sabedoria menor), originaram-se três tipos de substâncias, o espiritual (pneumatikoi), o animal (psychikoi) e o material (hylikoi). O Demiurgo pertence ao segundo tipo, por ele ser fruto da união da Achamothcom a matéria.[42]

A descrição do demiurgo, pelos setianistas é ainda mais negativa do que no sistema valentiano e seu status é inferior ao do Deus Supremo, como citado no Evangelho de Filipe, mas ele alcançou o status de criador dos arcontes e do mundo natural,[41] tornando-se arrogante disse "Eu sou o Pai, e acima de mim não há nenhum outro",[43] (como em Isaías 45:5 e Isaías 46:9), de acordo com o Apócrifo de João, uma voz divina, ultrajada com a reivindicação arrogante de Yaldabaoth, dá a resposta e o refuta, a voz ressoa: "A humanidade existe, assim como o filho da humanidade".[44]

Marcião contrapunha o deus do Antigo Testamento ao deus de Jesus Cristo, para ele a criação era obra de um deus maligno, o Demiurgo, apresentado na Bíblia judaica. Segundo Marcião, o Pai de Jesus não tinha nada em comum com o Deus judaico do juízo e da guerra, o deus do Antigo Testamento, juiz potente, justo, colérico, cruel, mesquinho, capaz de afirmar: «Eu formo a luz, e crio as trevas; faço a paz, e crio o mal; eu sou Jeová que faço todas estas coisas.» (Isaías 45:7), esse deus não poderia ser o mesmo pai de Jesus Cristo.[45] Coerente ao seu pensamento, Marcião não só rejeitou a Bíblia judaica como Escritura Sagrada, na luta pela mensagem pura, mas também os escritos neotestamentários em que predomina a tradição judaica.[46]

Referências

  1. Merriam-Webster - Demiurge (em inglês)
  2. "Mas "demiurgo" era também o "criador do mundo", "o primeiro magistrado dos estados do Peloponeso"."ORLANDO NEVES (27 de fevereiro de 2012). Dicionário da origem das palavras. [S.l.]: Leya. p. 124. ISBN 978-989-555-646-5. Consultado em 26 de novembro de 2017 
  3. 1911 Encyclopædia Britannica/Demiurge (em inglês)
  4. a b Gérard Durozoi; André Roussel (2005). Dicionário de filosofia. [S.l.]: PAPIRUS. p. 120. ISBN 978-85-308-0227-1 
  5. Platão. «Timeu, 29e». www.perseus.tufts.edu. Consultado em 8 de janeiro de 2020 
  6. "O conceito de demiurgo orgina-se na obra Timeu de Platão, onde é apenas um deus criador(...)"Andrew Phillip Smith (2009). A Dictionary of Gnosticism. [S.l.]: Quest Books. p. 69. ISBN 978-0-8356-0869-5 
  7. Platão, Timeu, 29 [wikisource]
  8. Platão, Timeu, 29
  9. "O demiurgo não cria o mundo a partir do nada." Jayme Paviani (2001). Filosofia e método em Platão. [S.l.]: EDIPUCRS. p. 141. ISBN 978-85-7430-234-8 
  10. "Todos os elementos da Criação, nomeadamente as criaturas, estão contidas no próprio demiurgo e ele não pode, de fato, gerar qualquer coisa sem ser a partir de si mesmo, desde que a criação ex nihilo é impossível." René Guénon (1 de outubro de 2003). Miscellanea. [S.l.]: Sophia Perennis. p. 11. ISBN 978-0-900588-55-6  (em inglês)
  11. Platão, Timeu, 29, 30
  12. Platão, Timeu, 29, 39
  13. Platão, Timeu, 30, 31
  14. Platão, Timeu, 46,68
  15. "Tudo que é bom é belo, e o que é belo não é isento de medida", Platão, Timeu, 30, 31
  16. "A filosofia patrística (e depois escolástica) carregou a figura do Demiurgo de valências que não existem no texto platônico(...)" REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão. [S.l.]: LOYOLA. p. 518. ISBN 978-85-15-01490-3 
  17. TIMEU: a Cosmologia de Platão, acesso em 29/04/2021.
  18. Jayme Paviani (2001). Filosofia e método em Platão. [S.l.]: EDIPUCRS. p. 141. ISBN 978-85-7430-234-8 
  19. "Platão, atribui a origem do tempo à ação do demiurgo, assimila-o ao movimento e nele vê uma espécie de ritmo do eterno(...)" Ivan Domingues (1996). O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história. [S.l.]: Editora Iluminuras Ltda. p. 119. ISBN 978-85-7321-037-8 
  20. REALE, Giovanni. História da filosofia grega e romana - Platão. [S.l.]: LOYOLA. p. 138. ISBN 978-85-15-03304-1 
  21. Proclo, Comentário em Timeu, 93
  22. Roelof van den Broek (24 de janeiro de 2013). Gnostic Religion in Antiquity. [S.l.]: Cambridge University Press. p. 209. ISBN 978-1-107-03137-1  (em inglês)
  23. God the Creator, God the Creation: Numenius' Interpretation of Genesis 1:2 (frg. 30) por Robbert M. Van Den Berg
  24. CHARLES H. KAHN (2007). Pitágoras e os pitagóricos - Uma breve história. [S.l.]: LOYOLA. p. 163. ISBN 978-85-15-03301-0 
  25. Antonía Tripolitis (2002). Religions of the Hellenistic Roman Age. [S.l.]: Wm. B. Eerdmans Publishing. p. 42. ISBN 978-0-8028-4913-7  (em inglês)
  26. "Ele nunca usa o imaginário do Demiurgo para descrever a mediação enter a hipóstase e o mundo sensível." Lloyd P. Gerson (13 de agosto de 1996). The Cambridge Companion to Plotinus. [S.l.]: Cambridge University Press. p. 339. ISBN 978-0-521-47676-8  (em inglês)
  27. Proclo, Comentários sobre Timeu de Platão, 1.306.24
  28. John Myles Dillon; Iamblichus (1973). Fragments of Iamblichus' Commentary on the Timaeus. [S.l.]: Brill Archive. p. 38. GGKEY:BWCTUDWS8RU  (em inglês)
  29. Mark J. Edwards (2006). Culture And Philosophy in the Age of Plotinus. [S.l.]: Duckworth. p. 55. ISBN 978-0-7156-3563-6  (em inglês)
  30. "Os gnósticos, por regra geral, representam o demiurgo, isto é, o arquiteto do mundo, a que identificam com Yahveh, como o pai de todo o mal. Eles o descrevem como irascível, ciumento e vingativo, contrastante com o deus superior que nada tem a ver com a criação." Paul Carus (30 de março de 2008). The History of the Devil and the Idea of Evil from the Earliest Times to the Present Day. [S.l.]: NuVision Publications, LLC. p. 167. ISBN 978-1-61536-151-9  (em inglês)
  31. DANIEL BURSTEIN; ARNE J. DE KEIJZER. Verdadeira História de Maria Madalena, A. [S.l.]: Ediouro Publicações. p. 128. ISBN 978-85-00-02040-7 
  32. LEON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João - IV. [S.l.]: LOYOLA. p. 229. ISBN 978-85-15-01649-5 
  33. "A derivação mais provável do nome “Yaldabaoth” foi dada por Johann Karl Ludwig Gieseler, “Filho do caos” do hebraico yalda bahut, ילדא בהות" Johann Karl Ludwig Gieseler (1857). A Text-book of Church History. [S.l.]: Harper & Brothers. p. 136 
  34. "No Evangelho de Judas, Saklas é o líder dos anjos que assessoram o demiurgo." Andrew Phillip Smith (2009). A Dictionary of Gnosticism. [S.l.]: Quest Books. p. 216. ISBN 978-0-8356-0869-5  (em inglês)
  35. "Samael ("Deus da cegueira") é identificado com Sakla, no apócrifo Hipóstase dos Arcontes,ele toma o lugar do deus hebraico na história do Jardim do Éden" Andrew Phillip Smith (2009). A Dictionary of Gnosticism. [S.l.]: Quest Books. p. 217. ISBN 978-0-8356-0869-5  (em inglês)
  36. a b Marvin Meyer. Mistérios Gnósticos. [S.l.]: Editora Pensamento. p. 100. ISBN 978-85-315-1508-8 
  37. COSTA, Paulo Cezar (2002). Salvatoris disciplina: Dionísio de Roma e a Regula Fidei no debate teológico do III século. Col: Serie Teologia, 81. Roma: Editrice Pontificia Università Gregoriana. p. 27. ISBN 978-88-7652-911-5. O demiurgo dos diversos sistemas gnósticos é identificado com o deus do Antigo Testamento e contraposto ao verdadeiro Deus, pai de tudo, o Deus agnostos. 
  38. "Segundo certos relatos, o demiurgo autor da criação é o deus dos hebreus, do qual a Bíblia diz que é "um deus ciumento" (Êxodo 20:5)." LEON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João - IV. [S.l.]: LOYOLA. p. 229. ISBN 978-85-15-01649-5 
  39. The Great Angel: A Study of Israel's Second God. [S.l.]: Westminster John Knox Press. 1992. p. 174. ISBN 978-0-664-25395-0 
  40. METZGER, Bruce Manning; COOGAN, Michael David (2002). ZAHAR, Jorge, ed. Dicionário da Bíblia: as pessoas e os lugares. 1. Traduzido por Maria Luiza Xavier de Almeida Borges. Rio de Janeiro: [s.n.] p. 233. ISBN 978-85-7110-690-1. Alguns sustentam que Sabaoth é um epíteto em aposição a Javé e que significa algo como "o poderoso", mas não há indícios no hebraico para tal significado. 
  41. a b John Glyndwr Harris (1999). Gnosticism: beliefs and practices. [S.l.]: Sussex Academic Press. p. 108. ISBN 978-1-902210-07-0  [1]
  42. Irineu, Contra Heresias, i. 5.
  43. Evangelho de Filipe
  44. Apócrifo de João, II, 14
  45. COSTA, Paulo Cezar (2002). Salvatoris disciplina: Dionísio de Roma e a Regula Fidei no debate teológico do III século. Col: Serie Teologia, 81. Roma: Editrice Pontificia Università Gregoriana. p. 28. ISBN 978-88-7652-911-5. Consultado em 29 de agosto de 2017. O Deus do A.T. era juiz potente, justo, colérico, cruel, mesquinho, capaz de afirmar: «sou eu que provoco a desgraça» (Is 45,7). Este Deus não poderia ser o mesmo pai de Jesus Cristo. 
  46. ZENGER, Erich. Introdução ao Antigo Testamento. [S.l.]: LOYOLA. p. 17. ISBN 978-85-15-02328-8 

Ligações externas

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