Síndrome de Brown-Séquard
A síndrome de Brown-Séquard é um conjunto de sintomas que surgem a partir de uma hemissecção (secção do lado direito ou esquerdo) da medula espinhal (hemissecção medular).
Síndrome de Brown-Séquard | |
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A síndrome de Brown-Séquard afeta uma metade da medula espinhal. É a representação inferior no diagrama. | |
Especialidade | neurologia |
Classificação e recursos externos | |
CID-10 | G83.8 |
CID-9 | 344.89 |
DiseasesDB | 31117 |
eMedicine | emerg/70 pmr/17 |
MeSH | D018437 |
Leia o aviso médico |
Já que a medula espinhal é composta tanto por neurônios motores descendentes quanto por neurônios sensitivos ascendentes, que parcialmente cruzam para o outro lado da medula, uma simples lesão medular hemilateral resulta em um quadro clínico com ambos os lados do corpo afetado:
- No lado lesado há perda da função motora, da propriocepção (percepção da posição dos membros e articulações) e da sensibilidade epicrítica (percepção de vibração e toque fino).
- No lado oposto há perda da sensibilidade protopática (percepção grosseira de dor, temperatura e pressão).
A síndrome ocorre na maioria das vezes com uma ruptura ou lesão da medula espinhal, ocorrendo também, com menor frequência, com tumores no canal vertebral.
Patologia
editarPara a compreensão dos sintomas presentes na síndrome, é necessária a compreensão da anatomia e função dos tratos nervosos que passam através da medula espinhal.
Bases anatômicas
editarTratos ascendentes
editarOs tratos ascendentes realizam as funções de sensibilidade protopática, sensibilidade epicrítica e sensibilidade proprioceptiva.
Nervos aferentes para a sensibilidade protopática (percepção grosseira de pressão, temperatura e dor) penetram na medula espinhal através das raízes nervosas dorsais e cruzam, ainda no mesmo seguimento, para o outro lado (contralateral). A partir de então eles formam o trato espinotalâmico (composto pelo trato espinotalâmico lateral (5a) e pelo trato espinotalâmico anterior (5b)), que vai até o tálamo e depois liga-se com o córtex somatosensorial do cérebro.[1]
Nervos aferentes para a sensibilidade epicrítica (percepção fina de toque e vibração) e para a sensibilidade proprioceptiva consciente (percepção da posição dos membros e articulações) sobem posteriormente pelo sistema coluna dorsal-lemnisco medial no funículo posterior (composto pelo fascículo grácil (3a) e fascículo cuneiforme (3b)) no mesmo lado (ipsilateral) da medula espinhal até o cérebro, cruzando para o outro lado somente no bulbo raquidiano.[1]
Nervos aferentes para a sensibilidade proprioceptiva inconsciente fazem parte do trato espinocerebelar (composto pelo trato espinocerebelar anterior e trato espinocerebelar posterior). Ambos os tratos anterior e posterior, por fim, transmitem a informação para o cerebelo ipsilateralmente. O trato espinocerebelar anterior realiza um cruzamento duplo, enquanto o trato espinocerebelar posterior não cruza.
Tratos descendentes
editarOs tratos nervosos descendentes realizam as funções de motricidade (movimento fino e grosseiro) e do sistema nervoso autônomo.
Entre 70 e 90% das fibras nervosas das vias piramidais (responsáveis pela motricidade fina) se cruzam antes da medula espinhal no bulbo raquidiano e descem pelo funículo lateral como trato corticoespinhal lateral (1a). As fibras nervosas restantes descem ipsilateralmente pelo funículo anterior como trato corticoespinhal anterior (1b) e não se cruzam ou se cruzam somente na porção terminal.
Também descem ipsilateralmente as vias extrapiramidais (2a-d), responsáveis pelo movimento grosseiro, e as vias do sistema nervoso autônomo.[2]
Consequências de uma hemilesão
editarUma hemissecção da medula espinhal causa danos em muitos tratos nervosos, tanto em tratos que a cruzam quanto em tratos que não a cruzam, tendo como consequência a ocorrência de déficits neurológicos em ambos os lados. A síndrome de Brown-Séquard é caracterizada então por uma lesão em cada um dos três sistemas neurais principais: no trato corticoespinhal, no fascículo grácil e fascículo cuneiforme do sistema coluna dorsal-lemnisco medial, no trato espinotalâmico e no trato espinocerebelar. Os feixes do sistema nervoso autônomo também podem ser lesados.
Sintomas contralaterais
editarOs sintomas contralaterais são causados por lesões nos tratos que cruzam a medula espinhal. Os tratos que cruzam a medula espinhal são o trato espinotalâmico e o trato espinocerebelar anterior. Como o trato espinocerebelar anterior realiza um cruzamento duplo, primeiro na medula espinhal e depois na ponte, os sintomas contralaterais são consequência exclusiva da lesão do trato espinotalâmico.
A lesão do trato espinotalâmico causa a perda da sensibilidade protopática do lado oposto do corpo: as sensações grosseiras de dor, temperatura e pressão são prejudicadas.
Sintomas ipsilaterais
editarOs sintomas ipsilaterais são causados por lesões nos tratos que não cruzam a medula espinhal (funículo posterior, trato espinocerebelar posterior, trato corticoespinhal e feixes simpáticos) ou que realizam um cruzamento duplo (como o trato espinocerebelar anterior, que cruza na medula espinhal e depois cruza novamente no mesencéfalo).
A partir do ponto da lesão para baixo, há um dano massivo ipsilateral na propriocepção (sensibilidade profunda) e na sensibilidade epicrítica (sensibilidade de vibração e toque fino).
Além disso há a presença de uma pequena zona anestésica ipsilateral à lesão e um pouco acima dela, que é causada pela destruição da região de entrada das raízes nervosas posteriores na altura da lesão.[3] No lado afetado pode ocorrer uma hiperestesia, na qual um leve toque pode ser sentido como doloroso (hiperalgesia).[3]
Devido à lesão dos tratos motores (tratos piramidais e tratos extrapiramidais) ocorre inferiormente e ipsilateralmente ao local da lesão uma paralisia espástica. No segmento afetado a paresia é, no entanto, flácida, já que nesta região os próprios neurônios motores inferiores e as raízes nervosas do mesmo segmento estão envolvidos na lesão.
Além disso ocorre, devido a uma lesão dos feixes simpáticos, que descem através do funículo lateral, uma dilatação dos vasos sanguíneos. Inicialmente a pele se torna vermelha e aquecida, depois ela se esfria e sofre cianose (fica azulada).[4] A lesão dos feixeis simpáticos também faz com que a produção de suor na área seja diminuída ou extinta (anidrose). Como os tratos do sistema nervoso autônomo (sistema nervoso simpático e parassimpático) descem em ambos os lados, normalmente uma síndrome de Brown-Séquard isolada não causa danos à bexiga urinária, reto ou potência sexual.
Uma lesão ao nível da junção cervicotorácica (C7/T1) ocasiona adicionalmente uma síndrome de Horner ipsilateral.
Trato lesado | Trato espinotalâmico (ascendente) | Fascículos grácil e cuneiforme do sistema coluna dorsal-lemnisco medial (ascendentes) | Trato espinocerebelar (ascendente) | Trato corticoespinhal (descendente) | Feixe simpático (descendente) |
Sintomas |
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Causas
editarA síndrome ocorre na maioria das vezes com uma ruptura ou lesão penetrante da medula espinhal, ocorrendo também, com menor frequência, com tumores no canal vertebral e lesões vasculares como por exemplo oclusão arterial
Diagnóstico
editarO diagnóstico da síndrome de Brown-Sequard é clínico, baseado apenas na história médica e exame físico do paciente. O paciente se apresenta inicialmente com sintomas aparentemente difusos:
No lado lesado há perda da função motora, da propriocepção (percepção da posição dos membros e articulações) e da sensibilidade epicrítica (percepção de vibração e toque fino). No lado oposto há perda da sensibilidade protopática (percepção grosseira de dor, temperatura e pressão).
- A metade corporal do lado da lesão está paralisada e sem percepção de vibração e toque fino do ponto da lesão para baixo.
- O lado corporal oposto à lesão não sente dor, mudanças de temperatura e pressão.
O diagnóstico se dá através de um exame neurológico com o teste das funções motoras, de sensibilidade térmica e de propriocepção.
Os principais exames de imagem para comprovação da extensão e causas da lesão são a radiografia, a tomografia computadorizada e a ressonância magnética.[6]
Epidemiologia
editarUma síndrome de Brown-Séquard isolada é muito rara. Frequentemente ocorrem outras formas de lesões simultâneas, que, ao invés da hemiparesia esperada, apresentam-se como uma paraparesia.[4]
Tratamento
editarEmbora a cirurgia da coluna vertebral proporcione quase nenhuma melhora nos déficits neurológicos, ela facilita a remobilização do paciente e os cuidados em geral. Ela torna os resultados a longo prazo e a capacidade do paciente em usar uma cadeira de rodas melhores.
Após o tratamento médico, o paciente pode se beneficiar de um tratamento com fisioterapeuta.
História
editarA síndrome foi descrita pela primeira vez em 1850 pelo famoso neurologista britânico / mauriciano Charles-Édouard Brown-Séquard (1817-1896), que estudou a anatomia e fisiologia da medula espinhal.[7][8] Brown-Séquard foi uma figura bastante controversa e excêntrica, e também é conhecido por um relato pessoal próprio de "proezas sexuais rejuvenescidas após a ingestão de extratos de testículos de macacos". Acredita-se atualmente que a resposta tenha sido devido a um efeito placebo, mas aparentemente isso foi "suficiente para iniciar o campo da endocrinologia e colocá-lo em prática."[9]
É interessante notar que muitas nações reivindicam a nacionalidade de Brown-Séquard, ele foi filho de um capitão maritmo americano e de uma mulher francesa. Ele nasceu nas ilhas Maurício. Ele estudou nos Estados Unidos e na França e trabalhou diversos anos no Reino Unido, Estados Unidos e França. Ele descreveu essa lesão após observar o acontecimento de trauma na medula espinhal em fazendeiros enquanto cortavam cana de açúcar nas ilhas Maurício.
O médico francês Paul Loye tentou confirmar as observações de Brown-Séquard no sistema nervoso central por experiências com decapitação de cães e outros animais e registrando a extensão do movimento de cada animal após a decapitação.[10][11]
Ver também
editarReferências
editar- ↑ a b Kahle: Taschenatlas der Anatomie – Band 3: Nervensystem und Sinnesorgane (8. Auflage). S. 56.
- ↑ Kahle: Taschenatlas der Anatomie – Band 3: Nervensystem und Sinnesorgane (8. Auflage). Ss. 58, 309.
- ↑ a b Kahle: Taschenatlas der Anatomie – Band 3: Nervensystem und Sinnesorgane (8. Auflage). S. 68.
- ↑ a b Mumenthaler, Bassetti, Daetwyler: Neurologische Differenzialdiagnostik (5. Auflage). S. 16.
- ↑ Machado, Angelo (2000). «21». In: Editora Atheneu. Neuroanatomia Funcional 2ª ed. São Paulo: [s.n.]
- ↑ Röscher, Rüther: Orthopädie und Unfallchirurgie (19. Auflage)
- ↑ synd/973 (em inglês) no Who Named It?
- ↑ C.-É. Brown-Séquard: De la transmission croisée des impressions sensitives par la moelle épinière. Comptes rendus de la Société de biologie, (1850)1851, 2: 33-44.
- ↑ The Practice of Neuroscience, p. 199-200, John C.M. Brust (2000).
- ↑ «Loye: Death by Decapitation». The American Journal of the Medical Sciences. 97 (4): 387. 1889. Consultado em 5 de agosto de 2009
- ↑ Alex Boese (2007). Elephants on Acid: And Other Bizarre Experiments. [S.l.]: Houghton Mifflin Harcourt. p. 13. ISBN 0156031353, 9780156031356 Verifique
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(ajuda). Consultado em 5 de agosto de 2009[ligação inativa]